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A arte da união

 

A formação de Javier Guerrero, a que possibilita sentido, além da dimensão técnica, não se deu nos bancos da Academia senão no espaço aberto, muitas vezes clandestino da luta política; na militância pela liberdade econômica e cultural de seu país; nas bancas da tortura... Isso é tudo o que “significa” na sua obra, o que lhe dá sentido e coesão simbólica:  as pedras e a cerâmica, argila e suor representam um discurso libertário, resultante de muitas uniões.
 

A união entre o destino do artesão e o do seu povo, representada em pedra, onde a "pedra no meio do caminho", transforma-se na construção-criação - senão ainda da sociedade que desejamos, material e concreta - de ficções que coordenam um Real às vezes mais profundo. A união do passado e o presente na "releitura" da obra de José Enrique Guerrero –o célebre "Pintor de Quito", que viveu uma realidade política que ainda não tinha feito utopias (seu período de formação atravessou a década de trinta).
 

Compondo, como já falado, a "biografia plástica" de Quito, José Enrique conciliou na sua paleta o protesto e a vida da cidade que amava (a vida do povo), da qual sua vida e a sua obra passou a fazer parte: o drama dos índios colorados, a gente de pele escura de Quinindé, as celebrações católicas, as ruas e  cantos. Do conjunto da sua obra-as casas baixas, caiadas e pançudas de Quito- sobressai o perfil de um povo inteiro: o aguerrido povo equatoriano.
 

Se José encontrou a política nas suas cores, Javier Guerrero encontrou suas cores na política. Operando a união entre esses mundos distantes (temporal e geográfico), condensa num mesmo núcleo ‘ficcional’ o tempo de seu avô - do sonho sufocado pela guerra ao mundo contemporâneo-, tempo de guerra sufocado pela ilusão da ‘morte das utopias’.
 

Javier é oriundo de uma família com uma longa tradição artística. Seu avô, que estudou na Europa e nos EUA, era filho de seu Ramón Guerrero Borja, grande desenhista e bordador em seda, mestre de Urbanidade e Bons Costumes, e iniciador dos Programas de Desenho Artístico nas escolas do Equador. Seu Ramón, por sua vez, era filho de Dona Manuela Borja Rebolledo, Menção Honrosa pelos seus trabalhos artísticos enviados à Exposição Universal de Chicago (1894).
 

Mas, foi na luta pelos direitos no Brasil –luta comum dos povos latino-americanos- que Javier reencontra a obra de José Enrique e a tradição, e retoma o elo artístico familiar num ponto de união. Quando morreu José Enrique, chegava a seu fim “una época en la historia de la ciudad, de trompizas arrullos y de serenatas con capas españolas y a la luz de los faroles, donde floreció el pasillo clásico ecuatoriano. Época que no volverá”. Porém, é a arte que simboliza, especialmente, a dimensão do que perdemos.

Assim, a originalidade na presente mostra aparece, da mesma forma, através de uma antiga luta: a luta do povo do Equador contra a multinacional Chevron (antiga Texas Company, Texaco), com a qual há mais de 20 anos se arrasta uma disputa, iniciada pela iniciativa civil, entre o Estado e essa empresa petroleira responsável por imensos desastres ambientais pelos que os equatorianos vem sofrendo diversos revezes, como a recente (e duvidosa) decisão de um juiz de Manhatan contra a Corte Suprema do Equador, numa clara e desigual disputa entre o capital internacional e a soberania de um povo.

 

Na sua obra, Javier se permite, depois de vários anos trabalhando a técnica tradicional do mosaico, um interessante recurso expressivo onde petróleo ‘representa’ e simboliza petróleo, a pedra representa a pedra, etc. Quer dizer, não é mais o ‘significante’, mas a própria coisa se significa a si mesma. Redundância pertinente: ao final, qual é o melhor equivalente destes minerais senão eles mesmos, tratando-se de um litígio deflagrador de ‘falsas diferenças’ entre a ordem do capital privado e o regime público de um Estado capitalista. 
 

Resgatando assim ao povo equatoriano a partir da ótica do avô socialista e levantando as questões conflitivas entre o público e privado, Javier Guerrero resgata também uma origem comum ao povo brasileiro: a de serem povos oprimidos de um mesmo continente, e o mesmo vínculo entre os destinos e experiências de “homens alucinados, de mulheres históricas e da nossa imensa solidão” como dizia Gabriel García Márquez, assim como um único sonho coletivo e uníssono, o da igualdade.

Gustavot Diaz

Artista plástico

GUERRERO POR GUERRERO

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